quarta-feira, 29 de outubro de 2008

29 de Outubro de 1904

Talvez a velhice esteja finalmente me vencendo. Vencendo-me, dia após dia. Hora após hora. E sei que daqui a alguns meses já não andarei mais sobre esta terra de sofredores e homens maus.
Mas hoje, finalmente, talvez como uma despedida de minha vida, saí de casa. Sim, saí de casa, pisei na rua em que moro, mas onde nunca estou. Meus pensamentos sempre são distantes, inalcansáveis. Hoje vesti meu melhor vestido, prendi meus alvos cabelos e saí por aí. O primeiro ser vivo que vi, parado à frente de casa foi um cusco velho como eu. Era branco, desses cuscos que vagueiam as ruas em busca de comida. Sorri para o cusco. Um sorriso amigável, e ele retribuiu com um abano de seu grande e sujo rabo. Começei a caminhar, vagarosamente, observando as pessoas que passavam apressadas por mim. Outras que saíam das lojas do comércio, ou entravam. O sol estava alto no céu, e a cidade estava como sempre. Mas para mim era algo novo. Fazia muito tempo que não pisava fora de minha casa.
Entrei em uma rua adjacente, denominada Major Cícero de Góes Monteiro. Uma rua larga, mas pacata. Observei um casal de idosos em uma varanda, e por um instante não reconheci. Abri um largo sorriso ao reconhecer, finalmente, a neta de Bento Gonçalves da Silva e seu esposo. A mulher me retribuiu o sorriso na mesma intensidade, e se levantou, com dificuldades. Chegou até mim depois de atravessar um gracioso jardim com gramas verdes, e me olhou profundamente, pousando as suas mãos nas minhas.
"Manuela..." dizia ela, enquanto penetrava com aqueles olhos verdes o fundo de minha alma. Essa era uma das características que os filhos e netos de Bento possuiam. O olhar penetrante e brilhante, que penetra a alma de qualquer ser vivente. "Ainda estais viva, Manuela!" Dizia ela, como se eu fosse a última das mulheres a andar sobre a terra. Logo depois falou que pensava que eu há muito estava morta. Pediu onde ficava exatamente a minha casa, mas expliquei por cima, não gostaria de receber visitas depois de morta. Pois era isso que iria acontecer, mais cedo ou mais tarde. Desconvercei que precisaria ir ao doutor Guimarães, pois eu não queria fazer laços de amizade com uma nobríssima descendente de Bento Gonçalves da Silva, para depois a mesma chorar pela minha morte.
Dei a volta pelo quarteirão, voltando novamente para Marechal Deodoro. Respirei novamente o ar matinal, e entrei em casa, pensando que talvez, da próxima vez que saísse de lá, seria dentro de um caixão de carvalho escuros com detalhes em dourado, com as mãos cruzadas e pousadas sobre o peito e um terço entre elas.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

13 de Outubro de 1904

O sol se vai, silencioso, nos confins do ocidente. O céu está inteiramente coberto por infinitas nuvens cor de papel. A cada bater de meu coração, é mais uma dor. Estou envelhecendo cada vez mais depressa. Meu corpo já não consegue me sustentar.
Hoje dormi até tarde, e depois de almoçar na sala de jantar, voltei ao meu quarto para ler meus antigos diários. Li o dia da morte de Dona Antônia. Vou escrever um pedaço:

"Era um dia de sol. Não me recordo a data exatamente. Mas um dia bonito, onde poucas nuvens percorriam os céus, e as aves cantavam. Dona Antônia sempre dizia que não devia de morrer em dias tão belos, como aquele em que ela morreu. No velório compareceram muitos amigos e familiares dos arredores, como Pelotas, Cristal e até mesmo lá de longe, de Porto Alegre. Antes de enterrá-la, dispararam tiros para o alto, em honra àquela que Matias mais amava no mundo. Matias chorava pela perda da avó. Quantas histórias ela não havia contado? Quantas cousas não havia ensinado? Entonces, agora tudo perdido. Ela desaparecera, para sempre.
Bueno, Dona Antônia sempre fora uma mulher dura, com um coração de pedra. Queria sempre o bem de suas filhas, Mariana e Rosário. Porém, Mariana havia se apaixonado pelo bugre que cuidava dos cavalos da estância, e Dona Antônia passou a prendê-la dentro de casa. Mas mesmo assim, ela fugira sempre, para vê-lo. Assim como eu fazia com meu Giuseppe. Porém, ela havia engravidado dele. Quando Dona Antônia soube, ela tentou matar a criança, oferecendo um chá para abortar a criança. Mas Caetana interviu. Assim nascera Matias, filho de João Gutierrez e Mariana. E Dona Antônia passou a amar o pequeno indiozinho, de olhos puxados e pele escura."

Matias teve um filho, Antônio. Há tempos ele havia me visitado, quando havia herdado a estância de seus pais. Mas depois, quando ele vinha me visitar, não o atendia. E depois de mais de cinco tentativas, ele nunca mais voltou a me ver. Por mais que eu quisesse vê-lo, eu não podia. E se ele se acostumasse com a minha presença? Eu estou velha o bastante, a cada dia tenho menos chances de estar viva.


Fecho o antigo diário e suspiro, longamente. O céu ainda continua cheio de nuvens, e a noite chega. Nenhuma estrela no céu é vista. Nada mais agora me interessa. Nem mesmo aquela chinoca de Anita. Nem mesmo o guapo Garibaldi. Nada. Hoje nem ao menos vi meu vestido branco, que havia feito para o dia em que ele chegasse. Hoje nem ao menos me olhei no espelho. Hoje, como sempre, observei os garotos indo para a escola, e apontarem para mim e rirem, me chamando de louca. Até mesmo esboçei um sorriso para eles. Sei que o dia em que não me verem na janela, saberão que estou morta. E eles poderão até mesmo, algum dia, visitar meu túmulo.
Hoje não sonhei, não calei. Quando tive vontade de gritar, reuni últimas das minhas forças e berrei. Rasguei roupas antigas e as queimei. Se pudesse, colocaria abaixo aquele sobrado no centro de Pelotas. Se pudesse, nadaria o oceano até a Itália, desenterraria meu Garibaldi e o faria abrir os olhos novamente para mim. E se ele não o fizesse, iria me deitar ao seu lado, fecharia os olhos, e esperaria a morte chegar.
E então choveu. Gotas grossas de chuva, para lavar minha alma de todos os meus pecados. Choveu, instantaneamente, para fazer as pessoas que passavam na rua correr em busca de um abrigo. Choveu, para que eu largasse meus diários e fossem para minha cama, talvez para passar lá minhas últimas horas de vida.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

06 de Outubro de 1904

As horas aqui na Marechal Deodoro, centro de Pelotas, parecem passar rapidamente, porém, não acontece o mesmo dentro das quatro paredes do meu quarto. Hoje a negrinha entrou em meu quarto, fazia dois dias que não a via. A prendi por alguns instantes, perguntando o que se passava na cidade. Ela dizia que a cidade fluia normalmente, crescia aos poucos, enriquecia. Mas na realidade, nada disso me importava. Perguntei à ela sobre os descendentes de Bento, mas ela nada sabia deles. Eram muitos pela cidade. Perguntei também sobre Antônio Gutierrez, filho de Matias Gutierrez, que por sua vez era filho de João Gutierrez, esposo de Mariana. A negrinha não sabia onde estava. Depois que herdara sua charqueada em Camaquã, sumira de vista. E eu mesma sabia, jamais tornaria a vê-lo.
A vida é assim. Temos sentimentos e premonições. Bueno, sei que jamais tornarei a ver nenhum daqueles que partilharam a estância nos tempos da guerra, todos já se foram. E eu sou a mais velha, não há nenhuma história mais que eu possa ouvir, e ninguém quer ouvir as minhas histórias. Os descendentes de Bento estão por aí, mas nenhum deles me visita, ou sequer deseja ouvir uma de minhas histórias. Matias gostava. Matias gostava de me ouvir contar sobre as aventuras de Giuseppe Garibaldi. Matias que sofreu desilusões após voltar da guerra do Paraguai. Matias que agora se encontra abaixo da terra.

Hoje me olhei no espelho, coisa que não fazia hà semanas. Vi no lugar onde estiveram belos fios pretos, cabelos grisalhos e fracos. Porém, os olhos azuis profundos ainda estão a me deixar essa última beleza de minha vida frágil. Olhos guapos estes que Anita não possuira. Por mais bela que fosse, estes belos olhos claros ela não possuira.

E então, hoje, vi o sol poente. O sol poente indo em direção ao ocidente, deixando atrás de si uma rota de seda alaranjada. Os raios que transpassavam as nuvens formavam figuras divinais nos campos ao longo dos pampas. E a minh'alma renascendo, mais feliz desta vez. No alto de meus 84 anos senti o renovar de esperanças dentro de mim. Uma paz profunda, por tanto tempo desejada. Nada hoje mais importava para mim. Apenas o sol longínquo, intocável, e a brisa que as janelas, antes emperradas e agora abertas, traziam para dentro de meu quarto, e deixavam meus cabelos grisalhos e velhos ao sabor do vento noturno.

sábado, 4 de outubro de 2008

04 de Outubro de 1904

O dia hoje está calmo. Lá fora, as estrelas cintilantes dançam ao redor de uma lua cheia, perfeita, encantadora. Olha as formas da lua cheia, sua feição, seus desenhos. Don'Ana sempre dizia que eu possuia um olhar aguçado. A luz prateada que a lua emana é bela, perfeita. Ilumina os pássaros noturnos que vagueiam pela noite.
Hoje, quatro de outubro, faz 68 anos que meu tio, Bento Gonçalves da Silva foi preso no combate da Ilha do Fanfa, durante a Guerra dos Farrapos. Depois desse episódio, ficamos sem o ver durante muito tempo. Esse dia maldito, que me fez perder a minha vida inteira. Diário, vou le contar a história:
Quatro de Outubro de 1836. Bento Gonçalves da Silva, o maior revolucionário que nosso povo já viu, lidera mais uma vez uma batalha contra os caramurus. Foi a famosa Batalha do Fanfa. Porém, lá foi preso quando os farroupilhas estavam em desvantagem, e foi mandando para a Corte, e depois encarcerado no Rio de Janeiro. Foi lá, no RIo de Janeiro, dentro da sua cela, que conheceu um estrangeiro que fora exilado de sua terra, e cujo nome era Giuseppe Garibaldi. O meu Giuseppe. E então, depois de le contar sobre a guerra que estava ocorrendo no sul, uma guerra feita para a liberdade de um povo, Giuseppe seguiu para o Rio Grande do Sul. E eu sabia. Sempre soube. Eu o via, em meus sonhos e visões, durante toda a sua viagem. Sabia que cada vez estava mais perto. Porém, não conhecia seu rosto, que se revelou extremamente belo quando se apresentou na casa de Don'Ana. E na hora ele também soube: eu o amava, sem nem ao menos conhece-lo.
Bueno, tio Bento acabou sendo mandado para um Forte na Bahia, muito longe do Rio Grande, um Forte da onde ninguém nunca havia fugido. Porém, com ajuda de alguns irmãos da maçonaria, ele conseguiu despistar os seguranças do Forte e fugiu. Fugiu para terminar o que havia começado. E, ao chegar na nossa terra, soube que o haviam escolhido presidente. Presidente de um povo. De uma nação.
Tio Bento sempre foi um homem inestimável, corajoso e forte. Porém, não deixava de ser um bom marido para Caetana e um bom pai para seus oito filhos. Oito filhos e filhas, que o amavam. Filhos estes que pelejaram quando precisava, herdando assim o espírito de guerreiro e herói do pai. Filhas estas que tiveram tantos filhos quanto sua mãe, e deixaram para muitas pessoas a honra de ter uma descendência única e honrada. Descendentes estes que vivem por ai, até hoje.

Sinto saudades daqueles tempos. Mas é errado dizer isso. Todos dizem que os tempos bons para guardar nas lembranças e memórias são os tempos de paz. E, naquela época, os tempos não eram de paz. Pessoas morriam e matavam. O sangue vermelho pintava as paisagens dos pampas. As mulheres choravam a perda de seus maridos e filhos. E eu era feliz, por que ao menos tinha Giuseppe. E quando ele se foi, as suas lembranças nítidas me faziam viver. Hoje, as lembranças estão embaçadas. Já as imaginei centenas de formas diferentes, em situações diferentes, de maneiras e diálogos diferentes. Mas a realidade é que nem ao menos me lembro de sua voz, como ela era realmente. Por mais que ele me sussurre todas as noites nos meus sonhos, não me lembro da sua verdadeira voz. Nem do seu jeito de olhar. Nem de suas maneiras. Apenas me lembro de seus olhares, e do gosto de sua boca. Suas mãos tocando em minha cintura, o calor do seu corpo no meu. Apenas isso. Nada mais.
Além do mais, naquela época eu tinha minhas primas e minhas irmãs. Rosário, Perpétua, Mariana. Todas elas tiveram um final feliz. Morreram jovens, porém felizes. E contituíram família. Menos Rosário, que entregou sua vida para viver na eternidade com seu caramuru.
E eu aqui, adentrando cada vez mais na velhice. Na velhice de minha vida, de minh'alma. Em um sobrado em Pelotas, vendo o tempo passar diante de meus olhos. Por isso nunca faço planos para o amanhã, pois pode não existir o amanhã. Por isso vivo minha vida pacata, medíocre e desoladamente. Pois amanhã posso não estar mais entre os vivos. Amanhã posso estar nos braços do meu Giuseppe, em um lugar chamado Eternidade.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

02 de Outubro de 1904

Olá. Sou Manuela de Paula Ferreira, e estes são meus diários imundos. Escrevo-os desde 1835, e desde então nunca parei. Já estamos em 1904. Moro em um pequeno sobrado no centro de Pelotas, embora isso não importe. Nunca saio de casa. Nunca. O único ser humano em que vejo nas últimas décadas é uma negrinha, criada da casa, antigamente uma escrava. Agora que não há mais escravidão, ela é paga, não para arrumar a casa ou cozinhar, mas para me fazer companhia.
Bueno, nos meus diários contarei algumas histórias, pensamentos e devaneios, que vivo tendo ao pegar a pena e o tinteiro e olhar para a rua, e para além dos pampas gaúchos. Histórias antigas, no tempo em que eu morava com minhas irmãs, primas e tias na casa de Dona Ana. No rumo da vida de cada um depois que a guerra terminou.; depois que Bento morreu. E principalmente falar do meu amor, Giuseppe, hoje morto em sua terra, morto na Itália, onde jaz ao lado de Anita.
Mas estas cousas não importam, pelo menos não agora. A chuva lá fora cai, cada vez mais forte. Aqui dentro uso o vestido há muito tempo feito para o dia que Giuseppe voltasse e me amasse. Hoje em dia em farrapos. As crianças que costumam passar todos os dias na rua, e me chamando de louca, voltam do colégio, correndo da chuva. Louca... Talvez eu seja louca. Talvez seja bom ser louca.

Estou com 84 anos, e jamais me casei. Depois que Giuseppe foi pelejar pros lados de Santa Catarina, jamais voltei a vê-lo. E a cada carta que chegava pelos carteiros da guerra, era uma faca que cravavam em meu coração: Giuseppe conhecera uma bela mulher em Laguna; Giuseppe e essa mulher lutavam lado a lado; O nome dela era Ana Maria de Jesus Ribeiro, e era uma brava, valente e forte mulher; Rumores falavam que Giuseppe e Ana Maria estavam enamorados; Giuseppe se casa com Ana Maria de Jesus Ribeiro, que fica conhecida como Anita Garibaldi; Anita Garibaldi está grávida de Giuseppe.
E o meu mundo começava a desmoronar. Giuseppe, que havia sido meu quando estava hospedado na Casa de Dona Ana, agora estava com outra. E então, por ser fraca, por ser frágil, jamais poderia ter acompanhado em uma peleja. Mas Anita pelejava com ele. Anita, ela era a mulher perfeita para o meu Giuseppe. Anita, aquela que eu mais desejei a morte. E ela morreu cedo, em meados de 1849. E o meu Giuseppe, desapareceu em 1882. Desapareceu longe de mim, longe de mim para poder ouvir suas últimas palavras. Giuseppe deixara o mundo sem ao menos dizer uma última vez que me amava. Mas seria mentira. Ele amava ela. Aquela Anita.
Mas vou le dizer, essas cousas do coração nos fazem viver. Vivo, por mais que sobriamente, e a morte não vem. Por mais que eu deseje, a morte não vem. Por mais que eu suplique... A morte não vem.
E quando vier, poucas pessoas sentirão minha falta. A negrinha, talvez, que irá herdar meu sobrado. As crianças que passam na rua me chamando de louca, todos os dias. E meus diários. Meus diários que apenas acumularão pó. Ou então serão jogados em algum canto pela negrinha. Esquecidos, para todo o sempre.